Lilian Sais é poeta e romancista. Formada em Letras, tem mestrado e doutorado em Letras Clássicas, pela Universidade de São Paulo, e atua como editora de texto e de conteúdo. Também produz e roteiriza o podcast Como o poema, que investiga processos criativos de poetas contemporâneas. Publicou, entre outros, Motivos para cavar a terra (2022, Cepe Editora), livro vencedor do 6º Prêmio Cepe Nacional de Literatura na categoria Poesia, e O funeral da baleia (2021, Patuá), contemplado pelo ProAC 2020 e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura na categoria “Melhor Romance de Estreia”. Em 2023, publicou O livro do figo (Edições Macondo), parte do projeto Lances, manobras e partidas – contemplado pelo ProAC 2022 na categoria poesia.
FLUTUAÇÃO
eu amo os figos
da figueira atrás
da tua casa
vou até a figueira
três vezes
por semana
nos outros dias
leio
sobre figos
li por exemplo
que cultivamos figueiras
desde a idade
das pedras
e é com as suas folhas
que adão cobre as partes
quando percebe
que está nu
as folhas da figueira
são recortadas
então adão cobre as partes
mas não muito
e os ramos da figueira
são frágeis
quebram fácil
de um jeito
que não sei explicar
mas o figo
não é frágil
se você nunca viu
um figo
pense numa pera
um pouco menor
ou veja um figo
porque também
já está na hora
come-se o figo em saladas patês
compotas geleias sorvetes
recheios de assados
molhos e outros tipos
de refeição
come-se o figo
inclusive sozinho
com uma mão
ou duas
o figo é carnudo
a polpa é suculenta
come-se o figo
como quiser
PECADO
minha mãe não deixava
levantar da mesa
com comida no prato
a comida que você coloca
no prato você tem
que comer
porque tem gente
que não tem o que comer
nem muito menos prato
minha tia
a irmã do meu pai
tinha muitos pratos e talheres
quando eu dormia
na casa dela
no café da manhã
ela abria a geladeira
e perguntava
quer coca-cola?
ela não tinha marido
nem filhos
mas além dos pratos
e dos talheres ela tinha
muita coca
eu gostava de coca
mais do que de leite
mas eu também gostava
de leite por isso
aceitei quando
João me ofereceu
um leitinho com amor
eu estava em jejum
e descobri que não
gostava do amor
o que eu gostava mesmo
era de brincar
de me esconder
e ficar sozinha
por muito tempo
até sentir fome
daí eu aparecia
para comer porque
como todo mundo sabe
saco vazio não para
em pé
VALOR
todos os dias
antes de dormir
pego um cotonete
fico deitada
passando o cotonete
nas sobrancelhas
uma duas três vezes
na sobrancelha direita
na sobrancelha esquerda
e de novo e de novo
como se tivesse
braços magros
e pernas
muito finas
quando acordo
procuro o cotonete
na cama
e olho para ele
as sobrancelhas
acariciadas
simétricas
e os olhos
bem abertos
daí fico corada
lembrando
do professor Antunes
que no fim da aula
sempre dizia
vá com deus
jovenzinha
deus vê tudo
minha filha
anda
fecha a janela
o vento vem forte
hoje a noite faz dois graus
que pode um agasalho
contra esse frio
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Mais sobre a obra
Em uma pulsão oral entre o erotismo e a ingenuidade, os poemas que compõem esse novo trabalho de Lilian Sais, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, parecem querer descrever certas coisas, entretanto, com um riso malicioso no canto da boca, é como se soubessem que essa tarefa não é uma brincadeira, mas sim um jogo, por isso o princípio do prazer montando cada verso. Um dos primeiros modos de se acessar o mundo, o que não por acaso reverbera em todo o livro, é pela boca. A boca encostada em coisas pequenas, em breves mordidas, para falar daquilo que é grande e não fica visível de um jeito fácil. O livro do figo é uma forma de usar a boca para, junto dela, encontrar algum reencantamento com um mundo em pedaços. Colocar para fora as palavras e, categoricamente, colocar para dentro as coisas que come. Daí o ato mundano de comer não só com a boca, mas também com as mãos, as frutas, os amantes, o jogo.
Arte: Still-life of figs in a basket and fruit on a ledge, de William Hammer.